Um Herói da Grande Guerra revisitado: Armando Ferraz

Actualizado Abril de 2021

Por Paulo Jorge Estrela

Há um episódio histórico, e quase mítico, sobre a participação de Portugal na Grande Guerra que é conhecido por quase todos: o épico confronto entre um Arrastão de pesca português convertido em Caça-Minas, e rebaptizado de Augusto de Castilho e um grande e moderno Submarino Cruzador alemão – o U-139, de forma a proteger um Navio da Marinha Mercante portuguesa, o São Miguel.

São muitas as referências bibliográficas e Sites onde este episódio é relatado e como tal não iremos aprofundá-lo. Em todos se realçam a desproporção de forças em confronto (quer em tonelagem quer em poder bélico: número de peças e seus calibres); a forma heróica como, abnegadamente, o heróico capitão do caça-minas, Comandante Carvalho Araújo, se bateu até à morte e ao afundamento do seu navio; a surpresa, e respectiva homenagem, da tripulação do submarino alemão perante tal reacção portuguesa; a curiosa situação de tudo ter sido fotografado e filmado por um Oficial alemão; ou ainda, o esforço suplementar a que os sobreviventes foram obrigados, naufragando em pleno mar oceânico durante uma semana, quase sem mantimentos e sem instrumentos de navegação, numa pequena balsa…

http://museu.marinha.pt/Museu/Site/PT/Extra/Popups/Oca%C3%A7aminasAugustoCastilho.htm

http://www.pontoblogue.com/2008/10/heroicidade-no-mar-o-caa-minas-augusto.html

http://naval.blogs.sapo.pt/arquivo/2005_09.html

Quer no Museu da Marinha quer no Museu Militar de Lisboa, existem óleos de grandes proporções, que ilustram este episódio, o que é bem demonstrativo da importância que o mesmo teve…

O que nos leva a colocar este post é o facto de, recentemente, nos termos deslocado ao Museu de Marinha e diligenciado para se alterar ligeiramente o espólio falerístico exposto referente ao Imediato do caça-minas, o Guarda-marinha Manuel Armando Ferraz.
Está patente ao público, numa das salas deste Museu, um conjunto com as suas mais emblemáticas condecorações, todas concedidas como recompensa dos seus vários actos heróicos relacionados com o citado episódio, e que apresentamos uma fotografia.

Como podemos verificar, trata-se do Colar da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, e no meio, quatro condecorações portuguesas: o grau de Oficial da referida Ordem; a Medalha da Cruz de Guerra de 1ª classe; a Medalha dos promovidos por distinção; e ainda a Medalha de ouro de Coragem, Abnegação e Humanidade, do Instituto de Socorros a Náufragos.
Para memória futura, aqui ficam os respectivos diplomas legais que as concederam:

Decreto de 29 de Novembro de 1918 (D.G. 281, 2ª Série, 1918 e rectificação no D.G. 205, 2ª Série, 1924)
«Tendo em muita consideração a brilhante conduta da guarnição do Caça-Minas Augusto de Castilho, do comando do 1º Tenente da Armada José Botelho de Carvalho Araújo, no combate travado no dia 14 de Outubro último, a 200 milhas dos Açores, com um grande submarino alemão armado de duas peças de 15cm, quando comboiava o Paquete S. Miguel, em viagem do Funchal para Ponta Delgada, salvando pelo seu heróico cometimento este navio de ser torpedeado e afundado com numerosos passageiros, sendo também dignos do maior elogio alguns actos de inexcedível bravura praticados não só durante o combate como ainda na perigosa travessia, por espaço de seis dias, feita pelas últimas praças que tiveram, numa pequena embarcação arrombada e desprovida de víveres e instrumentos náuticos, de abandonar, com o Guarda-Marinha Imediato, Manuel Armando Ferraz, o referido Caça-Minas, depois do intensivo fogo suportado valentemente e de esgotadas por completo as próprias munições da sua inferior artilharia: hei por bem, sob proposta do Secretário de Estado da Marinha, decretar que sejam galardoados tão relevantes feitos, promovendo por distinção e concedendo a Cruz de Guerra àqueles que bem mereceram da Pátria e como em seguida vai designado:

Guarda-Marinha Manuel Armando Ferraz, com vários ferimentos em combate – promoção a 2º Tenente, sem prejuízo de antiguidade, Cruz de Guerra de 1ª classe e 3º grau da Ordem da Torre e Espada, pela bravura e energia com que se conduziu no combate que no dia 14 de Outubro teve lugar entre o Caça-Minas Augusto de Castilho, do qual era Imediato, e o submarino alemão que pretendia afundar o paquete S. Miguel, que aquele comboiava, não só auxiliando o seu comando na direcção do combate como depois da morte deste, tendo sido obrigado a abandonar o navio por falta de munições, revelou inexcedíveis qualidades de comando, vastos conhecimentos e competência, conseguindo conduzir a porto de salvamento, apesar de ferido e durante uma viagem de cerca de 200 milhas, uma pequena embarcação arrombada, em que se alojavam 12 sobreviventes, quase todos feridos, sem instrumentos náuticos, sem velas, quase sem mantimentos e água, animando com o seu exemplo de energia e trabalho constante durante seis dias e seis noites, sem nunca esmorecer, a tripulação daquele frágil bote.»


Decreto de 28 de Maio de 1919 (D.G. 127, 2ª Série, 1919)
«Tendo em vista o que dispõe o Regulamento do Instituto de Socorros a Náufragos, aprovado pelo Decreto nº 1.029, de 6 de Novembro de 1914, e em harmonia com a consulta da Comissão Executiva Central do mesmo Instituto: hei por bem, sob proposta do Ministro da Marinha, conceder a Medalha de ouro de Coragem, Abnegação e Humanidade, ao Guarda-Marinha, Manuel Armando Ferraz, pelos relevantíssimos serviços que prestou conseguindo pôr a porto de salvamento uma pequena embarcação do Caça-Minas Augusto de Castilho, em que se alojaram doze sobreviventes, quase todos feridos do combate travado entre o referido Caça-Minas e um submarino alemão, em 14 de Outubro de 1918, tendo percorrido 200 milhas durante seis dias sem instrumentos náuticos e quase sem mantimentos.»
Mas existe um pequeno detalhe falerístico referente a este Oficial da Armada portuguesa (que acaba a sua carreira como Contra-almirante) que nunca é referido. Este nosso herói naval, foi igualmente reconhecido pelo governo de Sua Majestade Britânica, que lhe concedeu a sua distintíssima Distinguished Service Cross, e que foi caso único em Portugal.

Esta condecoração britânica que premeia o valor e a coragem (Gallantry) no mar dos Oficiais subalternos e Capitães, foi criada em 1901 com outro nome – Conspicuous Service Cross – e em 1918 passou a denominar-se com a actual designação, sendo que a sua concessão autoriza o acrescento da sigla DSC no fim do nome do agraciado.

A fotografia apresentada é uma DSC, com o centro do anverso idêntico à do Armando Ferraz, já que este vai variando de acordo com o monarca reinante, e no caso, trata-se da cifra do rei (e Imperador da Índia) Jorge V.
A autorização oficial para a receber e usar foi dada pelo Despacho ministerial de 27 de Abril de 1924, mas somente publicada em Ordem à Armada nº 2, de 1926.

Ora, é com agrado que podemos reportar que a Direcção daquele Museu anuiu à nossa sugestão, e a DSC britânica deste nosso herói – única condecoração britânica deste tipo concedida a um português – irá sair da caixa forte onde estava depositada e ficar patente ao público, sendo uma mais-valia, não só para o visitante português mais atento, mas especialmente para o visitante britânico, muito mais atento a estes detalhes e maior conhecedor da sua herança falerística…

Para rematarmos esta pequena história, apresentamos uma fotografia de coleccção particular, onde podemos ver o “nosso homem”, envergando o seu Grande Uniforme de Oficial da Armada e ostentando as suas condecorações, nomeadamente a Distinguished Service Cross.

Actualização (Abril 2021)

A Falerística enquanto ciência auxiliar da História, pode e deve ser alvo de eventuais correções, até porque outras fontes documentais vão sendo reveladas, liberadas o acesso a outras, passando a ser possível a sua consulta por investigadores e público em geral.

Como já tive a oportunidade de referir na minha Comunicação “Grande Guerra: a Marinha Portuguesa e a Falerística” em 8 de Março de 2016, na Academia de Marinha e deixar grafado nas respetivas Actas de 2016, publicadas por esta distinta instituição, o 1º Tenente Manuel Armando Ferraz não foi o único oficial da Armada a ser agraciado com esta prestigiante condecoração naval inglesa – a Distinguished Service Cross.

Também o 1º Tenente José Torres, foi agraciado pelo Rei Inglês em 04.08.1918, com esta condecoração mas, Infelizmente, não solicitou autorização para a aceitar e usar, como a lei exigia, e como tal, não se tornou público nem foi averbada no seu processo.

Foi agraciado por proposta do Comandante-chefe britânico na África Oriental [Lieutenant-General Sir Jacob Louis van Deventer KCB CMG DTD (18 July 1874 – 17 August 1922)], que depois de saber da decisão régia, informou o Governador-geral de Moçambique [General Pedro Francisco Massano de Amorim GOTE • GCA • GCIC • MCC • MV] solicitando que comunicasse ao Ministério da Marinha e Ultramar essa concessão (e de outros militares e civis portugueses) o que foi feito por telegrama.

Cf. ESTRELA, Paulo Jorge. Grande Guerra: a Marinha Portuguesa e a Falerística [conferência com o mesmo título proferida no dia 8 de Março de 2016, na Academia de Marinha, no âmbito do ciclo conferências por esta organizada, sobre a participação portuguesa na Grande Guerra e em particular da Marinha], in «MEMÓRIAS 2016», Volume XLVI, Lisboa, Academia de Marinha, 2017, pp. 113-146 [https://academia.marinha.pt/pt/edicoes/MemoriasAM/Memorias_2016.pdf]

Sobre a Grande Guerra na África Oriental Portuguesa cf. Ana Paula Pires. The First World War in Portuguese East Africa: Civilian and
Military Encounters in the Indian Ocean, in e-JPH, Vol. 15, number 1, June 2017 https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/issue29/pdf/v15n1a06.pdf